Para o seu retorno na música pop, propriamente dito, Lady Gaga não poupou esforços. Encabeçado por BloodPop, as faixas do Chromatica são fruto do trabalho do time de produtores composto por Tchami e BURNS e ainda conta com reforços pontuais de Axwell, Klahr, Skrillex, Max Martin, Madeon e LIOHN, nomes que dominam a Electronic Dance Music com a ponta dos dedos.
A proposta de Gaga era uma só: fazer um álbum dançante que espantasse todas as suas preocupações. Embora soe paradoxal, em entrevista concedida ao radialista Zane Lowe, a cantora confirmou que enquanto gravava o Chromatica, estava passando por um momento delicado em sua vida, relacionado à depressão e sua condição especial por conta da fibromialgia, e até mesmo depois de uma sucessão de relacionamentos malsucedidos. A partir dessa contradição que nasceu Chromatica.
Não tem como falar da produção das faixas sem falar das interludes. As faixas “Chromatica I, II e III” são instrumentais que servem para engrandecem o álbum com uma espécie de trilha sonora épica separando o Chromatica em três atos e proporcionando transições imperdíveis entre elas e as faixas seguintes. Uma delas, inclusive, proporciona um dos pontos altos do álbum – estamos falando da transição entre as faixas “Chromatica II” e “911”.
Seguindo o embalo de “Chromatica I”, que é inclusive o prelúdio do clipe de “Stupid Love”, as primeiras notas de “Alice” surgem, já arrancando o refrão da faixa, e Gaga mostra que não veio a passeio. A batida bass house com a voz da cantora ecoando já a fez uma das favoritas do público e é forte candidata a novo single. Vale lembrar que segundas faixas constumam terá preferencia da cantora na escolha de suas músicas de trabalho, vide “A-YO”, “Venus”, ambos singles promocionais, assim como “Love Game”, “Alejandro” e “Born This Way”.
Em seguida, o álbum continua com o clima no alto, não dando tempo nem para o seu ouvinte respirar com a surpresa que foi “Alice”. Entram em ação os únicos singles da era, até então: “Stupid Love” é uma ótima retomada à house music dos anos 90, enquanto “Rain On Me” tira Ariana Grande de sua zona de conforto e ambas dividem esse dueto, que a primeira vista era difícil de imaginar dando certo. Porém, explorando corretamente os pontos fortes dos vocais de cada uma, BloodPop e BURNS souberam encaixar esses dois vozeirões em uma música pop que soasse moderna e pronta para as pistas.
Dando continuidade ao primeiro ato do álbum, Gaga tomou o maior risco do álbum nas duas próximas faixas. Com “Free Woman” e “Fun Tonight”, Gaga pisa um pouco no freio, fazendo com que essas músicas não consigam acompanhar o ritmo acelerado das faixas anteriores, o que pode amargar um pouco os ouvintes pela quebra de clima. Embora possivelmente “Free Woman” funcione muito bem ao vivo e em grandes shows em estádios, como aparentemente será a Chromatica Ball, “Fun Tonight” promete uma batida em diversas partes, até que a música acaba, frustrando um pouco as expectativas.No entanto, esse respiro possa ser proposital, preparando a todos para o que estava por vir.
“Chromatica II” começa sutilmente, mas conforme vai ganhando velocidade ao som de violinos, logo se inicia a poderosa “911”, com a voz de Gaga extremamente computadorizada e com direito a refrão chiclete sob instrumental electro-pop, que faz qualquer um bater cabeça enquanto ouve a faixa. Em seguida, “Plastic Doll” que mesmo tendo Skrillex na produção, não impressiona muito nesse quesito. Talvez não estejamos sendo justos com a música, já que nossas expectativas para ela eram altas por conta dos produtores, e também está inserida no ato mais dançante do álbum.
O pequeno deslize cometido por “Plastic Doll” não ser uma faixa tão memorável logo é perdoado porque agora BLACKPINK está na área! A aguardada “Sour Candy” , parceria de Gaga com um dos, senão o maior girlgroup de k-pop do mundo, intercala os versos de Lisa, Jennie, Jisoo e Rosé com o inconfundível timbre de Gaga, ditando o tom uk garage da faixa, sendo um verdadeiro suprassumo para a essa vertente da house music.
As músicas “Enigma” e “Replay” surgem como irmãs no álbum, sendo muito parecidas sonoramente, mas ambas usando de diferentes artifícios para soarem chicletes e dançantes. A vibe dos anos 90 volta a tomar forma com “Enigma”, criando um clima house usando teclados. Já “Replay” assume uma forma normalmente encontrada no gênero indie-dance, colocando o astral do álbum em patamares até então desconhecidos. É uma daquelas músicas que liberamos tudo que tem de ruim no nosso pensamento e nos deixamos levar pelo seu ritmo.
Com “Chromatica III”, o álbum chega na sua reta final em tom mais sóbrio e logo começa “Sine From Above”, parceria da cantora com ninguém menos que Elton John. Quem conhece a discografia da cantora, sabe o que está faltando até agora nesse álbum: uma balada. Quem conhece os momentos icônicos entre Elton e Gaga nas perfomances ao vivo juntos também sabe o que vem por aí: uma balada. Os dois fizeram todos de bobos, já que a faixa não tem nada a ver com uma balada. Originalmente, “Sine From Above” seria uma faixa do cantor com a dupla Axxwell & Ingrosso. Chegaram a gravar demos em 2013, mas faltava algo para dar “liga” na música. Gaga era perfeitamente o que a música precisava. O dueto entre Elton John e a madrinha de seus filhos, como já era de se esperar, teve harmonia de sobra. O que ninguém esperava era que a voz do cantor caberia tão bem numa música propriamente EDM, muito menos com o inesperado drum and bass explosivo no fim da faixa, onde Axwell deixa sua assinatura no álbum.
As últimas esperanças de uma balada no álbum ficaram a cargo de “1000 Doves”, que tem início bem mais lento que as outras músicas do álbum. Porém, não teve jeito, Chromatica não era o lugar para músicas lentas. Embora seja a faixa mais emocionante do álbum, é inegável que o refrão proporcione grandes momentos preenchidos pela house music. Por fim, Lady Gaga resolve encerrar o álbum com chave de ouro. É a vez de “Babylon”, outra favorita entre os fãs, e não é à toa. A música nos transporta instantaneamente para ballrooms, e estamos prontos para tentar movimentos arriscados e nos aventurarmos no voguing.
As melodias e batidas usadas no álbum são tão agitada se animadas que acabamos esquecendo que o álbum foi feito enquanto Gaga estava triste. Isso é facilmente lembrado em qualquer uma das músicas em que se presta atenção na letra. Durante sua carreira, a cantora sempre levou a sério o conteúdo de suas músicas, e grande parte delas eram bastante autobiográfica, e com seu sexto álbum não foi diferente.
A primeira faixa propriamente cantada do álbum, “Alice”, retrata seu descontentamento pelo lugar em que ela está inserida, e para isso, usa como metáfora a história de Alice. Mesmo Gaga não sendo a personagem de Lewis Carrol, continua na incessante busca pelo País das Maravilhas, um lugar onde ela se sentirá inclusa e em paz.
Em “Stupid Love”, a cantora lamenta por sempre buscar por amor, e no fim das contas, a situação não acaba como planejado. Com “Rain On Me”, embora entristecida, com motivos de sobra para chorar, Gaga ainda assim busca forças pra seguir em frente se sentir grata por pelo menos estar viva em meio a tanta tristeza.
A letra de “Free Woman” é muito maior que a música em si. É emponderadora do inicio ao fim. Com ela, Lady Gaga não deixa que todas as vezes que homens tentaram a derrubar ou abusar não irão defini-la. Ela é dona do seu próprio império, conquistado por seu merecimento. Se ela chegou ao patamar de carreira onde ela se encontra hoje, dominando as paradas e as pistas de dança, foi porque batalhou por isso, como uma mulher livre.
No entanto, depois de toda essa injeção de confiança, “Fun Tonight” é colocada logo em seguida para mostrar que às vezes as pessoas ao seu redor tentam de agradar e botar para cima, mas você não vai corresponder a esses estímulos. A cantora expõe que inúmeras vezes ela só não está no clima para fazer coisas divertidas com seus amigos por estar passando por uma fase introspectiva, tendo que lidar com uma doença sem cura que provoca picos de dor e com depressão que veio com a soma da fama e sua saúde. Perceber a letra dessa música é um grande choque para muitos. Como pode uma melodia tão alegre e livre estar em harmonia com uma à retratação da vida que a cantora vinha levando?
Embora super alto astral, em “911”, Lady Gaga chega a conclusão que os problemas de sua vida vieram de dentro para fora, nomeando-a inimiga de si mesmo. Para lidar com isso, Gaga recorre a medicamentos anti-psicóticos. Na canção, ela se refere a eles como o seu suporte. Toca vez que recorre a eles, sente que está discando ao 911, número telefônico de socorro nos Estados Unidos. Já com “Plastic Doll”, Gaga tenta romper com um dos maiores pilares das suas questões pessoais: a fama. Ela se diz farta dessa indústria que a trata como um produto, preocupada mais com o que ela veste do que com o que ela sente, assim como ocorre com outras artistas do ramo. “Plastic Doll” é uma reclamação da cantora para o mundo, desejando que o centro das atenções seja suas ideias e o que ela tem para falar, e não a parte superficial do que se vê de fora.
Depois de guardar algumas mágoas e rancores, passar por experiências indesejadas que vieram com a fama, com “Sour Candy”, Gaga confessa que pode ter criado certo escudo para que não acabe se machucando mais vezes, mas que continua aberta a conhecer novas pessoas e se apaixonar mais uma vez. Ela quer alguém que conquiste sua confiança, e para isso, se mostrará uma pessoa mais dura do que realmente é. Justamente por conta disso que “Enigma” já veio logo na sequência. Seus interesses amorosos terão que desvendar cada faceta da Gaga para conseguirem se aproximar dela. Enquanto ela se mantém misteriosa, consegue finalmente se divertir com a situação.
Muito embora o álbum esteja no seu ápice de adrenalina, fazendo as caixas de som chegarem no talo, “Replay” é outra faixa extremamente paradoxal. Seu ritmo pode até confundir, mas não esconde que a cantora convive com gatilhos constantes que a fazem revisitar algumas das suas piores experiências, e quando sua mente revisita esses momentos, soa como tortura. Esse sentimento que vai e volta sem parar faz Gaga desabafar que ás vezes ela acredita que sua mente faz mal a si mesma. É aí que “Sine From Above” entra como uma luva. “Sine”, em inglês, é uma frequência musical, e que se assemelha foneticamente com a palavra “Sign”, que, se utilizado e traduzindo informalmente o título da música, é entendido como “um sinal lá de cima”. A parceria com Elton John, além de ser uma poderosa faixa EDM, ainda consegue trazer grande emoção. Na visão da cantora, o que a fez lutar, não desistir dos seus objetivos foi sua paixão pela música.
Na reta final, em “1000 Doves”, Gaga canta sobre estar totalmente entregue a um relacionamento, mas para isso, seu parceiro também tem que fazer o mesmo. Só assim, com tamanha entrega, que a pessoa com quem ela decidir passar a vida vai conseguir fazê-la feliz e esquecer seus problemas e a fazer se sentir como se estivesse voando entre pombas brancas, achando seu lugar de paz.
Caminhando nesse mesmo sentido, tendo sido atingida sua paz interior, “Babylon” tem instrumentais e letra que finalmente casam entre si, transbordando atitude. A faixa apresenta uma Lady Gaga mais destemida, que não liga para a opinião alheia. Deixa que falem e que fofoquem. A faixa ainda é faz o trocadilho entre as palavras “babble on” (tagarele) e “Babylon” (Babilônia), local onde se encontrava, segundo algumas crenças, a Torre de Babel, um lugar onde pessoas do mundo todo se comunicavam em suas línguas e eram entendidas pelos outros. Em “Babylon”, Lady Gaga volta a ser o centro das atenções e o assunto do momento, sem demonstrar em momento algum qualquer pingo de vulnerabilidade. Depois de todos os sentimentos retratados no álbum, essa é a imagem que Stefanie Joanne Angelina Germanotta quer passar de si para o mundo.
Em “Alice”, Gaga inicia o álbum pedindo que a levem para casa, o país das maravilhas. Ele se refere a Chromatica. Ele é sua casa. Não é nem uma utopia e nem uma distopia, segundo ela própria, mas sim um lugar na sua mente onde todos dos sons e cores se misturam. No mundo surreal de Chromatica, nenhuma coisa é melhor que outra. É o lugar onde a igualdade predomina.
Até o momento, pudemos ver que a identidade visual se baseia no conceito derivado da intersecção entre a ficção científica derivada da atmosfera de “Mad Max” com a estética cyber-punk. Também pudemos ver que existem certos grupos de pessoas unidos por uma característica em comum e que são representados pela mesma cor. Falando em cor, a própria artista menciona que enxerga uma cor própria para cada música, o que pode indicar que a cada lançamento, haja uma cor predominante na identidade visual dos clipes, como foi no caso de “Stupid Love” e “Rain On Me”, com as cores rosa e roxa, respectivamente.
Indo mais para o campo das suposições, então sem muitas confirmações sobre teorias, há quem diga que “Babylon” é a faixa mais importante para amarrar o conceito do álbum. Isso por que, segundo a mitologia babilônica, existiu uma divindade literalmente chamada Gaga enviada para combater um Tiamat, uma deusa símbolo do caos e em forma dragão. No jogo de RPG “Dungeons & Dragons”, Tiamat é representada por um dragão de 5 cabeças, tem cada uma, uma cor diferente. Coincidência ou não, em uma das sessões de estúdio para gravação do álbum, BURNS publicou uma foto dando a entender que ele e Lady Gaga estavam jogando “D&D” juntos, o que aumentou ainda mais as teorias sobre a ligação entre a mitologia babilônica e o álbum.
Aliado a isso, em muitas das fotos do encarte do álbum mostraram a cantora em um ambiente pouco habitado, e com trajes que remetiam à dragões. Se isso é verdade ou não, só saberemos quando a cantora confirmar ou negar de vez. Até lá, deixamos essas teorias aqui a título de fanservice aos little monsters.
Onde o álbum se encontra em sua discografia
Embora seja inegável que a dance music seja o lugar em que Gaga se encontra como artista, as suas aventuras no jazz, country e pop-rock foram necessárias para apurar sua música e passar por esse período de maturação. Sem essas fases, talvez o Chromatica não tivesse o bom resultado que vem colhendo, tanto para a crítica quanto para o público.
Desde o ARTPOP, a artista vem mostrando ao público que ela é muito mais que aquele seu lado freak que predominava em todas as suas aparições públicas no inicio de sua carreira. Participar de projetos menos pretenciosos fez com que as pessoas passassem a ter outra imagem de Lady Gaga, tanto como pessoa quanto como artista.
Devido a isso, Gaga pôde voltar à sua zona de conforto sem se preocupar em agradar os mais diferentes gostos. Gostem ou não da persona mais excêntrica da Lady Gaga, muito mais pessoas viram que é possível deixar os preconceitos que tinham contra a artista no início da carreira e aproveitarem suas músicas. Afinal, novamente sem grandes pretensões, o Chromatica foi concebido com o único intuito de fazer com que as pessoas se divertam, ainda que com letras mais tristes das que estamos habitados da cantora.
Quando todos achavam que Lady Gaga já tinha atingido o seu auge, lá em 2012, sendo uma das maiores e mais comentadas artistas do pop, ela mesma provou que ainda tinham barreiras a serem quebradas e que conseguiria alcançar novos patamares. A aclamação com seu show do intervalo no Super Bowl, um show memorável feito às pressas para encabeçar o Coachella, devido ao desfalque do festival com a gravidez de Beyoncé, e a temporada de premiações na promoção do filme Nasce Uma Estrela só provaram que não existia barreiras que limitem o alcance da cantora.
Por conta de tudo isso, apesar da frenesi com a volta dela na música pop, não podemos afirmar que ela nunca deveria ter saído do gênero. Sem ter passado por esses passos, o resultado do Chromatica não seria tão bom. O lado pop de Lady Gaga voltou reinventado, e o mais importante, com sua imagem perante ao mundo renovada.
Sendo um álbum dance-pop, faz com que o álbum remeta muito ao primeiro álbum da carreira da cantora, o The Fame, mas ainda é importante lembrar com produção fortemente voltada à EDM, sobretudo à house music, faz com que o Chromatica se aproxima muito do ARTPOP, ainda que muito mais lapidado.
Com seu sexto álbum, Gaga convidou produtores, na sua grande maioria DJs, a visitarem espaços menos visitados pelo mainstream quando se trata de música eletrônica, mas sem perder de vista o limite imposto para que ele soasse coerente, o que foi o que faltou no seu quarto álbum sobretudo nos instrumentais.
Em meio a situação atípica de isolamento social, o Chromatica, que prometeu nascer para estourar as caixas de som das festas noturnas, vai acabar se tornando trilha sonora da quarentena de muitos, permitindo breves escapismo com seu alto astral, mesmo que as letras não estejam na mesma sintonia. Lady Gaga voltou a dar aula de como se faz música pop,e grandes provas disso foram as faixas “Alice”, “911”, “Enigma”, “Replay” e “Babylon”.
O sexto álbum de Gaga tem tudo para entrar na corrida das principais categorias das premiações musicais do próximo ano em conjunto com o Future Nostaliga, de Dua Lipa, e o After Hours, do The Weeknd. Ano que vem estaremos aqui para descobrir quem levou a melhor. Até lá, você ainda pode tacar mais stream nessa lenda aclamada que Lady Gaga se provou ser:
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